FOLHA critica MARÇAL por NÃO SER POLÍTICO de DIREITA BEM COMPORTADO tipo PSDB que ESTÃO ACOSTUMADOS

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Folha de SP

Marçal profissionalizou a gamificação da política

Nesse cenário, ele é mais uma celebridade do que um político

27.set.2024 Christina Vital da Cunha

Ouvi de um interlocutor, parcialmente em tom de brincadeira, que ele estava ansioso para acompanhar a “segunda temporada” da série “Pablo Marçal”. Essa fala ilustra como uma parcela da sociedade tem acompanhado as eleições municipais como se fossem um reality show. A disputa em São Paulo exemplifica essa nova fase da vida social: a gamificação das eleições.

A gamificação, técnica usada na educação, em empresas, no marketing e até por grupos religiosos para gerar engajamento, consiste em inserir elementos de jogos —como competições entre participantes e a criação de narrativas— para tornar certas experiências mais envolventes. Essa lógica, porém, foi incorporada à maneira de produzir comunicação e jornalismo no país. Vale a pena considerarmos quais são as implicações disso.

A reação ao ‘caso da cadeirada em Pablo Marçal’ indica que o entretenimento dos debates eleitorais se tornou um grande foco de interesse da sociedade – Reprodução – 15.set.24/TV Cultura

Influenciadores como MrBeast, um dos maiores youtubers do mundo, utilizam a gamificação como ferramenta, criando desafios e competições para produzir vídeos assistidos por milhões de pessoas. Marçal, como empresário e “evangelista digital”, adota uma abordagem semelhante, transformando sua presença na política em uma série de eventos espetaculares que obscurecem o sentido político, favorecendo a visibilidade e diluindo os limites da moralidade pública, com escaladas de agressões, tanto verbais quanto físicas.

A reação ao “caso da cadeirada em Pablo Marçal” indica que o entretenimento dos debates eleitorais se tornou um grande foco de interesse da sociedade, esvaziando essa forma democrática de interação entre candidatos e eleitores, além da própria política. A ascensão de Marçal reflete esse esvaziamento.

Há quem defenda que a politização da sociedade aumentou, já que nunca se discutiu tanto política nem houve tantos debates durante uma campanha. Contudo, minha impressão, a partir de diferentes interações de pesquisa, é de que o interesse tem crescido mais pelo espetáculo do que pelo confronto de propostas. Marçal, nesse cenário, é mais uma celebridade do que um político. E nesse contexto, as fronteiras morais entre certo e errado, entre atitudes violentas e comportamentos adequados, parecem se dissolver.

Com uma habilidade apurada para o “jogo”, como diria Bourdieu, Marçal entende que a produção estética da masculinidade viril e a gramática motivacional do evangelismo da prosperidade são essenciais para ser um jogador de destaque. Para o público, ele se tornou o personagem de um jogo.

Ele reformulou sua imagem com cirurgia de emagrecimento, aderindo à estética de masculinidade associada ao bolsonarismo. No campo do cristianismo evangélico, trocou a mensagem da cruz —de sofrimento e serviço ao próximo— por um discurso motivacional. Sua ênfase na origem humilde serve à apresentação de sua imagem como um “homem de sucesso” hoje, carregando os valores tradicionais que essa representação implica.

Marçal surpreendeu o núcleo do “bolsonarismo raiz” ao levar a gamificação das eleições a um novo patamar. Diferentemente de Bolsonaro, que entretinha o público ocasionalmente com motociatas e falas no cercadinho, Marçal fez da gamificação um estilo constante de comunicação, confundindo adversários ao misturar fronteiras entre verdade e desinformação. Suas respostas nos debates, ou a ausência delas, revelam uma performance calculada.

Esse é um debate novo para a sociedade, mas urgente. A desconexão da sociedade com a política, com a democracia e com a própria ideia de “verdade dos fatos” enfraquece os pilares da vida pública. A gamificação da política é um reflexo dos tempos atuais, onde o entretenimento é supervalorizado e a linha entre o real e o fictício se confunde. Trata-se de um produto das transformações econômicas e sociais dentro do capitalismo global.

E agora? Como as instituições democráticas podem se preparar para lidar com a valorização da violência e a banalização das eleições que essa gamificação política promove?


Fonte: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2024/09/marcal-profissionalizou-a-gamificacao-da-politica.shtml