As lições de Voltaire
Nosso rastro de pequenos e grandes abusos já vai longe
Fernando Schüler
“Comentei com uma amiga jornalista que ia escrever sobre o caso do Filipe Martins. Ela foi rápida: “Não faz isso”, disse ela, com jeito querido. “Por quê?”, perguntei, já antevendo a resposta. “Porque esse treco de prisões e censura da ‘direita’ não tem jeito. É como aquela traição sobre a qual o casal não fala. Tem muita coisa errada, mas é melhor empurrar para debaixo do tapete.” Achei criativo. É isso mesmo. Mas resolvi escrever. Talvez eu seja meio implicante. Ou seja o gosto pela filosofia. Na minha intuição, o país precisa tratar das coisas complicadas. E uma delas é esse “treco” da prisão provisória e aparentemente infinita do Filipe Martins. Ele era assessor do Bolsonaro e me lembro de uma imagem dele apertando a mão do Trump, no Salão Oval. Sua prisão já vai para mais de quatro meses. O mandado dizia que sua localização era “incerta”, que poderia ter havido “burla do sistema migratório”, e por isso seria “necessária a decretação da prisão cautelar”. Dizia também que ele constou na lista de passageiros daquele voo do Bolsonaro para Orlando, no finalzinho de seu governo. O que “poderia indicar que tenha se evadido do país”, para fugir da Justiça. Tudo 100% errado. O sujeito não fugiu, a localização não era incerta, morava com a namorada, em Ponta Grossa. E já provou inúmeras vezes que não “se evadiu”. Para encurtar a conversa, sua prisão é um completo nonsense. O absurdo a fogo brando, com o qual há muito parece que já fomos nos acostumando.
No Brasil de hoje é assim. Viramos colecionadores de absurdos. Um que está na minha lista dos top 10 é o da Debora. Ela estava lá, nas invasões do 8 de Janeiro. Cabeleireira de São Caetano, mãe de dois guris de 6 e 9 anos. No dia do “golpe” escreveu “perdeu, mané”, com batom vermelho, naquela estátua de pedra da Justiça, na frente do STF. Andava com a frase debochada do ministro Barroso na cabeça, foi lá e escreveu. O batom acabou saindo com um pouco de detergente, mas sua imagem está lá. Foi um repórter que flagrou. Ela ali sentada, calmamente, rabiscando a frase terrível, com um “sorriso no rosto”, como leio numa reportagem.
Achei que tinha lido “sorriso golpista”, mas foi imaginação. O fato é que ela está presa há mais de um ano. E pelo jeito será condenada a mais uns quinze ou dezessete. Nossa Suprema Corte acha que ela estava dando um “golpe de Estado” naquele domingo. É possível. Quem sabe ela poderia realmente ter tomado o poder, se não tivesse perdido tempo com a maldita frase. Cresci com as imagens do golpe de 1964, dos tanques descendo a Presidente Vargas, no Rio, as baionetas, a tropa na rua. E agora aquele batom? Algum plano? Algum apoio militar? Alguma arminha, mesmo que de brinquedo? Esquece. Isso é ou não é um “experimento popperiano”, me diz um conhecido. Não é possível provar ou refutar coisa nenhuma. Há uma tese, produzida em última instância e apoio no mundo da opinião. É o que basta, no Brasil de hoje. A maior chance é que os guris cresçam sem Debora. No último Natal o mais novo foi para o canto da sala e chorou. Disse que, sem a mãe, nada daquilo tinha graça. Todos choraram. E o Natal se foi. Perdeu, manezinho. A frase nua e crua que faltou alguém escrever naquela estátua.
Dói um pouco mergulhar nessas histórias. Mas é necessário. É o jeito de entender o que se passa no país, um pouco abaixo da pele retórica das redes, do bate-boca político. Reconheço que há uma impertinência nisso. Tempos atrás me perguntaram por que presto tanto atenção a certos “detalhes”. Onde está o crime, qual a acusação, onde está escrito na lei tal e tal coisa. Fiquei pensando nisso. No fim me dei conta que é exatamente dessa intransigência em relação a direitos individuais que é feita a tradição liberal. Mas isso não respondia à pergunta. Há um lado pessoal nisso tudo. Por alguma razão, fui aprendendo na vida a desconfiar da narrativa política. Qualquer narrativa. E criando também um enorme asco pelo abuso de poder. E é com isso que estamos lidando no Brasil. Se a censura prévia não existe na lei brasileira, mas uma autoridade empurra goela abaixo a censura prévia, o que exatamente isso significa? Se alguém é preso, por razões inexistentes, no mundo real, estamos ou não falando de abuso de poder? Tempos atrás também me perguntaram se fazia sentido questionar decisões judiciais. Na visão do meu interlocutor, não fazia. Se um ministro manda prender ou manda soltar, dizia ele, ou manda qualquer coisa, é a regra do jogo. Ponto. O raciocínio tinha lá seu apelo, mas era falso como uma nota de 3 reais. Uma República se define precisamente pelo fato de que ninguém, nem mesmo a mais alta autoridade, está acima das leis e da Constituição.