Choveu bem mais em 1941; por que então o Guaíba ficou mais alto? – Artigo semanal de Alexandre Garcia

Compartilhar


Pilatos nas águas

Inventaram um novo nome para a enchente: catástrofe climática. O nome induz à ideia de que a culpa é do clima, e aí não precisa dragar, cuidar de encostas, fiscalizar construção de pontes e aterros

Alexandre Garcia – 31 maio 2024
null
Enchente no Rio Grande do Sul, em 1941 | Foto: Fotos Antigas/RS

Ex-prefeitos de Porto Alegre, todos de esquerda, emitiram nota criticando a falta de manutenção do sistema de proteção da capital contra cheias. Alceu Collares, Olívio Dutra, Tarso Genro, Raul Pont e José Fortunati — todos foram prefeitos a partir de 1986. Todos foram responsáveis pelo que agora criticam. Mas lavaram as mãos nas águas do Guaíba e fizeram a nota falando em “indignação”, de olho na eleição de outubro, em que o prefeito Sebastião Melo, que não é esquerdista, é forte candidato à reeleição.

As águas no Rio Grande do Sul fizeram emergir no tempo um livro lançado em 2009: A Enchente de 41, da Editora Libretos, com pesquisa e texto de Rafael Guimaraens. Ganhou importância e atualidade porque, sem as emoções de hoje, o documentário permite que o leitor perceba os motivos da catástrofe de agora. Afinal, é para isso que serve a História: para que aprendamos com o passado a evitar a repetição de tragédias. Tudo muito parecido, com a diferença de que, nos 15 primeiros dias de maio de 1941, choveu 619,4 milímetros em Porto Alegre; hoje, passados 27 dias de maio, choveu 513,6 milímetros.

Ex-prefeitos de Porto Alegre, todos de esquerda, emitiram nota criticando a falta de manutenção do sistema de proteção da capital contra cheias. Alceu Collares, Olívio Dutra, Tarso Genro, Raul Pont e José Fortunati — todos foram prefeitos a partir de 1986. Todos foram responsáveis pelo que agora criticam. Mas lavaram as mãos nas águas do Guaíba e fizeram a nota falando em “indignação”, de olho na eleição de outubro, em que o prefeito Sebastião Melo, que não é esquerdista, é forte candidato à reeleição.

As águas no Rio Grande do Sul fizeram emergir no tempo um livro lançado em 2009: A Enchente de 41, da Editora Libretos, com pesquisa e texto de Rafael Guimaraens. Ganhou importância e atualidade porque, sem as emoções de hoje, o documentário permite que o leitor perceba os motivos da catástrofe de agora. Afinal, é para isso que serve a História: para que aprendamos com o passado a evitar a repetição de tragédias. Tudo muito parecido, com a diferença de que, nos 15 primeiros dias de maio de 1941, choveu 619,4 milímetros em Porto Alegre; hoje, passados 27 dias de maio, choveu 513,6 milímetros.

As calhas dos rios que não foram limpas jogaram a água das chuvas para fora. Ambientalistas conseguiram impedir as dragagens apelando ao Ministério Público

Por que, então, as águas do Guaíba estiveram mais altas agora? Em 1941, ficaram 4,75 metros acima do nível; agora, 5,25 metros — meio metro acima. A resposta está em todos os lugares em que as águas já recuaram: meio metro de lama. Além de meio metro de lama, desde 1941 foram depositados nos rios areia, detritos, sujeira, lixo. O calado do Guaíba era de 6 metros até recentemente, mas hoje é de 4. Aqui em Brasília, antes da estação das chuvas, sempre limpo as calhas de minha casa, para tirar as folhas. Se não fizer uma faxina, elas vão transbordar. Assim, as calhas dos rios que não foram limpas jogaram a água das chuvas para fora. Ambientalistas conseguiram impedir as dragagens apelando ao Ministério Público. Então as águas, em vez de saírem pelo leito dos rios, extravasaram por toda parte.

Enchente no Rio Grande do Sul, em 2024 | Foto: Douglas Pfeiffer

Semelhanças até nos incêndios: em 1941, foi consumida pelo fogo a fábrica Secco & Cia, na Júlio de Castilhos; em 2024, no domingo 26 de maio, foi o prédio da Autoglass, no bairro Humaitá. O número de mortos por leptospirose foi cinco numa Porto Alegre que tinha 272 mil habitantes; hoje, até agora, sete já foram levados pela doença e há quase 150 casos confirmados. O governo federal ficou meio distante, embora a mídia procurasse mostrar que não. Getúlio Vargas enviou um telegrama ao interventor Cordeiro de Farias dizendo que “o governo federal está pronto a colaborar”, mas concluía sem decisões: “Desejo que o prezado amigo continue a informar-me minuciosamente sobre as ocorrências. Cordiais saudações, Getúlio Vargas”. O Diário de Notícias traduziu isso com uma manchete ufanista: “Auxílio Total ao Rio Grande”. Quanta semelhança com 83 anos depois…

No capítulo final, o livro relata as atuais medidas de proteção a Porto Alegre. Diques de 68 quilômetros e um espesso muro de concreto com 2.647 metros de extensão, 3 metros de altura e 3 metros no solo, tudo construído entre 1971 e 1974 pelo Departamento Nacional de Obras de Saneamento (DNOS), no governo Médici. O livro, que é de 2009, relata a campanha da esquerda para derrubar o muro, porque foi feito no tempo dos militares; os ambientalistas ajudavam, alegando que o muro separa Porto Alegre do Guaíba. Sob essa pressão, a Câmara de Vereadores aprovou em 1997 uma lei para derrubar o muro, “ante o clamor do movimento ecológico”. Em agosto de 1983, o muro foi pela primeira vez testado. As águas subiram e tratou-se de fechar os oito portões/comportas de aço de acesso ao cais. Tudo emperrado. Fecharam com tratores e guindastes puxando os portões.

Depois disso, vieram os prefeitos que assinaram a nota crítica. Todos sabiam que o sistema precisava de manutenção. O tempo passou e isso só se agravou. Ao lado disso, inventaram um novo nome para a enchente: catástrofe climática. O nome induz à ideia de que a culpa é do clima, isto é, do Sol, cujas explosões regulam a temperatura dos oceanos, que resultam em mais ou menos chuva, frio e calor. Aí não precisa dragar, cuidar de encostas, fiscalizar construção de pontes e aterros, impedir edificação em lugar de enchentes periódicas, nem cuidar dos diques, bombas, muros e comportas. Basca cuidar do pum da vaca e da geração de carbono. Não ouviram o rugido das águas do Taquari-Antas em setembro. São os Pilatos que nada fizeram.

 

Fonte: https://revistaoeste.com/revista/edicao-219/pilatos-nas-aguas/


You may also like

Page 167 of 3705